MILK
A arte cinematográfica deve sempre prevalecer. Talvez esta seja a frase mais significativa para todos os amantes do cinema, ou de todas as formas de arte em geral. Obviamente, estamos falando de filmes, não da história da humanidade ou de um conceito filosófico qualquer. Dentro de uma obra voltada para a sétima arte, a cinematografia deve prevalecer. E o que significa isso exatamente? Significa simplesmente que tudo aquilo que vier a ser utilizado por um realizador, deve servir ao cinema. O cinema nunca deve servir a um outro elemento, a não ser talvez ao espectador. Ensaio sobre a cegueira (blindness) tropeça neste conceito: um filme criado para servir a essência de um livro, quando, na verdade, o livro deveria ser modificado para servir ao filme. Afinal de contas, estamos diante de um produto audiovisual. No entanto, por mais contraditória que possa parecer a afirmação que virá a seguir, às vezes a arte deve servir a um propósito maior. Principalmente se este propósito for o de ampliar nossos horizontes apresentando uma personalidade de caráter sublime. Richard Attenborough foi, por duas vezes, autor desta exceção citada. Primeiramente ao descrever a trajetória do mais belo dos seres humanos do século XX em Gandhi (idem) e posteriormente, ao respeitar o homem que é a representação mais pura do cinema e da arte contemporânea em Chaplin (idem). Em O mundo de Andy (man on the moon), Milos Forman migrou na contramão do entretenimento ao narrar de forma direta a curta vida de Andy Kaufman, gênio para poucos, louco para muitos e desconhecido para a grande maioria. Existem outros exemplos a serem citados, mas seria indelicadeza tentar acumulá-los em tão pouco espaço. Por esta razão, Gus Van Sant está perdoado por seu convencional Milk – a voz da igualdade (Milk).
Quem já leu minhas colunas ou me conhece pessoalmente, sabe que não sou nem um pouco entusiasta em relação ao trabalho de Gus Van Sant. Acho sua carreira supervalorizada e seus filmes, em sua grande maioria, superestimados. Mas, uma obra fala por si só. Se ela for boa, como unidade, não importa das mãos de quem tenha saído. Na virada dos anos 80 para os anos 90, este diretor nova-iorquino escreveu um belo capítulo sobre a juventude esquecida (talvez ignorada) pelos olhos cínicos de uma sociedade que caminha a largos passos para a autodestruição. O protagonista Matt Dillon (a figura rebelde dos filmes de Francis Ford Coppola) liderava um grupo que vivia de assaltos a farmácias no intuito de vender a mistura de remédios como drogas. Drugstore cowboy (idem) revelava ao mundo um realizador seguro e de olhar preciso. Garotos de programa (my own private Idaho) tinha o intuito de seguir nesta linha. À frente do elenco, River Phoenix, considerado o James Dean de sua geração, talvez por sua postura rebelde, talvez por sua morte precoce, regia esta alegoria em tom de farsa com toques sutilmente surrealistas. Como resultado, personagens que não convencem envolvidos em uma trama que beira o medíocre. A fase seguinte foi extremamente infeliz para Gus Van Sant. Até mesmo as vaqueiras ficam tristes (even cowgirls get the blues) e Um sonho sem limites (to die for) deveriam cair no esquecimento do mundo do cinema, se é que já há muito não caíram. Somente com o concreto roteiro dos então jovens Matt Damon e Ben Affleck, Gênio indomável (the good Will Hunting), Gus Van Sant voltou a receber atenção, provavelmente devido à sua indicação ao Oscar e aos mais de 100 milhões de dólares acumulados em bilheteria. O filme, um tanto convencional, surpreende pela destreza de seus argumentos e pela força da interpretação de Robin Williams. Além disso, o trabalho de direção revela momentos inegavelmente autorais, que acompanhariam o realizador, pelo menos até o presente momento de sua carreira. Foi então que ele tomou a decisão mais infeliz de sua carreira.
Hollywood vive de novas histórias, de adaptações de bestsellers e, obviamente, de refilmagens. Ben-hur (idem) foi mais magnânimo e icônico em sua versão de 1959, apesar de já ter feito furor em 1925. Guerra dos mundos (war of the worlds) teve mais força nas mãos de Steven Spielberg que em sua versão original de baixo custo na década de 50. São muitos os exemplos, mas apesar de serem quase certeza de retorno financeiro, regras devem ser respeitadas. E Gus Van Sant desrespeitou estas regras e demonstrou uma total falta de bom senso ao iniciar seu projeto Psicose (psycho). Ele não escolheu apenas um grande suspense, mas talvez o maior de todos os tempos. Seria o mesmo que pintar uma nova versão da Capela Sistina, ou compor um novo arranjo para Stairway to heaven. O desastre só não foi maior, pois parece que hoje, pouca gente se lembra desta barbárie cinematográfica.
Encontrando Forrester (finding Forrester), filme irritantemente convencional, não teve êxito algum. Curiosamente, pouco tempo depois tinha início sua fase mais próspera (pelo menos em relação à crítica), a fase, digamos: experimental.
Cannes premiou Elefante (elephant), cuja opinião pessoal prefiro deixar em aberto, e Últimos dias (last days), biografia livre dos dias que antecederam a morte de Kurt Cobain, agradou alguns e aborreceu muitos outros. Com Paranoid Park (idem), ele parece ter finalmente associado conceito a conteúdo. O resultado é um belo filme com alguns excessos visuais, mas com beleza e tristeza aflorando de seus personagens e imagens. As seqüências em 16 mm dos skatistas em Paranoid Park são particularmente belíssimas. O que nos leva, finalmente, a Harvey Milk. Tema de seu recente longa-metragem.
A força do filme vem de direções variadas.
A história do primeiro gay assumido a ser eleito para um cargo na política extremamente conservadora dos EUA já seria o suficiente como tema. Mas a personalidade de Milk é muito mais profunda. O roteiro impressiona pouco pela estrutura e muito pela forma que o antecede. O desconhecido Dustin Lance Black fez uma pesquisa pessoal entrevistando e coletando fatos pelas ruas, dando uma descrição muito mais pessoal e íntima que um roteiro baseado em um livro escrito por um historiador ou jornalista. As interpretações são, com poucas exceções, fantásticas. A começar por Josh Brolin que durante muito tempo foi apenas o irmão mais velho do herói de Os Goonies (the Goonies). Hoje, Brolin demonstra força pessoal para protagonizar o filme mais premiado da carreira dos irmãos Coen (onde os fracos não têm vez) e se destacar em O gângster (american gangster) diante de Denzel Washington e Russell Crowe. Emile Hirsch não tem a fama de Shia Lebouf, mas desponta como o jovem mais versátil de sua geração. A força de sua expressão em Na natureza selvagem (into the wild), que curiosamente é dirigido por Sean Penn, revela força e extrema segurança, elementos raros em atores pouco maduros. Até mesmo James Franco, que até então não passava de uma personalidade carismática, tem presença de cena. Mas a glória vai para Sean Penn. Eu sempre procuro valorizar o artista que cria o personagem sobre aquele que tem alguém como referência, mas a força de Milk nas mãos de Penn é estonteante. Não só recria o homem, como um dia foi: vivo e ativo, como move um grupo, em sua voz e espírito. Um homem de muitas palavras, de verborragia simples e direta e de princípios inabaláveis. Faleceu jovem, antes mesmo de finalizar aquilo que tinha iniciado. Talvez viesse a ter um papel importante na luta contra a AIDS, talvez não. Podemos supor muito, mas o resultado é inconcluso. Os fatos estão à frente, expostos na tela, de forma elegante pelas mãos de Gus Van Sant que se limitou a contar uma história, abrindo mão de seu cinema autoral em prol da força de Harvey Milk. Um homem simples com um ideal. Ambos.
José Vicente
Zé Vicente é formado em cinema pela FAAP, trabalha com roteiros de curtas-metragens e dá aula de história do cinema para jovens e membros da terceira idade na instituição ASSA. email: josevic_taddeo@yahoo.com.br
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